
Por: Dr. André Brandão – Professor e Advogado Criminalista.
Hodiernamente, ante a crescente onda de acidentes de trânsito, muito se tem discutido sobre as infrações penais perpetradas na direção de veículo automotor.
Ponto central dessa discussão, reside em saber se o atropelamento praticado por motorista que estava a disputar racha ou “pega” (competição de veículos em via pública sem autorização legal) ou em estado de embriaguez se enquadra como delito doloso (dolo eventual) ou culposo (culpa consciente).
Primeiramente, insta salientar que os conceitos de dolo eventual e culpa consciente não se confundem.
Em ambos, há previsão do resultado, no entanto, no dolo eventual, o agente prevê o resultado e assume o risco de sua ocorrência, ao passo que, na culpa consciente, o agente prevê o resultado, porém, o afasta.
Para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o racha (ou “pega”) é “típica conduta animada por dolo eventual”, posto que se deduz que o condutor tem previsão da ocorrência do resultado lesivo (antecipa-o mentalmente), todavia não se importa com essa possibilidade, permanecendo firme em sua conduta.
Com base nesse posicionamento adotado pela Corte Cidadã, a prática revela que a maioria dos casos envolvendo mortes provenientes de racha (“pega”) são tratados sob a ótica do dolo eventual, conduzindo, desta forma, o processo, ao seu juízo natural, qual seja, o Tribunal Popular do Júri, a quem compete julgar os crimes dolosos contra a vida, sejam eles tentados ou consumados, e os a ele conexos ou continentes.
Ocorre que, em 2014, o Código de Trânsito Brasileiro fora modificado, mormente o seu artigo 308, dispositivo que trata do delito de racha, trazendo modalidades preterdolosas ao tipo penal (parágrafos 1º e 2º).
Diante desta nova previsão legislativa, aquele que, participando, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística, vier a causar lesão corporal de natureza grave (parágrafo 1º) ou morte (parágrafo 2º), desde que as circunstâncias do caso concreto demonstrem não ter o agente buscado ou assumido o risco de produzir o resultado (dolo direto e dolo eventual, respectivamente), deverá ser punido segundo as disposições do Código de Trânsito Brasileiro, afastando-se, em um primeiro momento, ilações a respeito de um delito doloso contra a vida (ex. homicídio), e por consequência, a competência para julgamento do Tribunal do Júri.
Deste modo, o fato de o agente ter adotado postura de alto risco para com o seio social, praticando racha, não conduz, à primeira vista, à conclusão sobre conduta movida por dolo eventual, devendo, se for o caso, o agente ser responsabilizado a título de culpa, nos termos do artigo 308, parágrafos 1º e 2º do Código de Trânsito Brasileiro, reservando-se a incidência do dolo eventual aos casos em que restar evidenciada a indiferença do agente diante do resultado lesivo provável.
Não menos tormentoso é o tema referente ao atropelamento e demais eventos fatais ocasionados por condutor embriagado.
Atualmente, percebe-se uma tendência de se imputar (atribuir) a prática de homicídio doloso (dolo eventual), nos casos de atropelamento cometido por motorista embriagado e em alta velocidade.
O simples fato de o agente estar embriagado, tomar a direção de um veículo automotor e imprimir alta velocidade, não conduz, inevitavelmente, à conclusão acerca de ele ter agido com dolo eventual.
Sabe-se que o dolo eventual é caraterizado pelo fato de o agente prever o resultado e aceitá-lo, agindo com evidente descaso para com o bem juridicamente tutelado pela norma penal (ex. vida, integridade física).
Nas lições de Rogério Sanches Cunha, afirmar que alguém previu a ocorrência do resultado e assumiu o risco de produzi-lo significa que antecipou mentalmente que sua conduta poderia causar determinado resultado lesivo e se manteve insensível, aceitando aquele resultado como provável.
Na prática, não é o ocorre, posto que, na maioria dos casos, o que se observa é uma manifesta imprudência do motorista que toma a direção de um veículo sem ostentar condições de guiá-lo com segurança. No exemplo de Rogério Greco, imaginemos aquele “que, durante a comemoração de suas bodas de prata, beba excessivamente e, com isso, se embriague. Encerrada a festividade, o agente, juntamente com sua esposa e três filhos, resolve voltar rapidamente para sua residência, pois queria assistir a uma partida de futebol que seria transmitida pela televisão. Completamente embriagado, dirige em velocidade excessiva, a fim de chegar a tempo de assistir ao início do jogo. Em razão do seu estado de embriaguez, conjugado com a velocidade excessiva que imprimia ao seu veículo, colide o seu automóvel com outro, causando a morte de toda a sua família. Pergunta-se: Será que o agente, embora dirigindo embriagado e em velocidade excessiva, não se importava com a ocorrência dos resultados? É claro que se importava”.
Deste modo, a partir dos conceitos jurídico-penais, como, a exemplo, o conceito de dolo eventual, e da recusa ao desvirtuamento do sistema penal, conclui-se que nem sempre é possível atribuir a figura do homicídio doloso ao indivíduo que embriagado e em alta velocidade acaba, fatalmente, ocasionando a morte de terceiros (seja dentro ou fora do veículo).
Isso se dá pelo fato de nem sempre estar evidenciado que o agente, na iminência de um resultado lesivo, se manteve indiferente em relação às consequências de sua conduta.
Apesar ser tal temática deveras tormentosa, os Tribunais Superiores, majoritariamente, entendem que o delito perpetrado em condições extremas de embriaguez ao volante associada ou não à alta velocidade, é culposo (culpa consciente).
Neste sentido:
O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre da mera presunção ante a embriaguez alcóolica eventual. 3. A embriaguez alcóolica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo.
Apesar de a teoria pugnar em um sentido, qual seja, a responsabilização a título culposo, na prática, vemos os órgãos de persecução penal não raramente concluirem inquéritos/oferecerem denúncias imputando um delito doloso contra a vida, atraindo, desta forma, a competência constitucional do Tribunal do Júri, quando, na verdade, a competência deveria restar fixada nas mãos do juízo singular.
Conclui-se, portanto, que, apesar de vivenciarmos uma enorme onda (quase que eterna) de acidentes de trânsito com consequências incomensuráveis e indeléveis, e que, na maioria das vezes, tais fatos são provenientes do binômio álcool e direção, não podemos, a pretexto de uma (suposta) resposta à sociedade, em busca de uma punição a qualquer custo, desvirtuar o sistema penal atribuindo a determinados fatos elementos que pertencem a outros institutos, como é o caso da frequente inversão dos conceitos de dolo eventual e culpa consciente, a fim de que, com isso, possamos emprestar penas mais severas a situações que, à luz das “voz das ruas” deviam ser punidas com mais rigor.
Caso se constate a deficiência na reprimenda de determinada conduta, como, no caso, a prática de lesão corporal e o homicídio no Código de Trânsito Brasileiro, tal falha deve ser suprida por meio da alteração do preceito secundário do tipo penal (pena prescrita em lei), e não pelo desvirtuamento do sistema penal, como vem ocorrendo de maneira recorrente.
Assim, resta-nos concluir que, na prática, a teoria é outra…
REFERÊNCIA:
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte geral. (arts. 1º ao 120) / Rogério Sanches Cunha – 6. ed. rev, ampl e atual – Salvador: JusPODIVM, 2018. 624 p.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 15ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2013, vol I.